Numa das minhas pesquisas na net encontrei este artigo do meu antigo treinador, João Abrantes, que fala da importância da velocidade base no meio fundo.
Reproduzo aqui a parte em que é explicitada o conceito de IRE:
"(...) Muitos dos que já leram esta primeira parte do trabalho, poderão estar ainda um pouco cépticos relativamente à importância do desenvolvimento da velocidade de base em atletas de meio-fundo e fundo. Vamos mostrar alguns exemplos práticos, de como a falta de velocidade é extremamente limitativa à evolução de um fundista.
Vamos para isso falar um pouco do “Índice de Resistência Específica” (IRE).
Por exemplo, para um atleta de 800 metros, o seu melhor resultado teórico nessa distância seria o seu máximo pessoal aos 400 metros, multiplicado por dois. Ou seja, um atleta que tivesse como recorde pessoal aos 400 metros o tempo de 60 segundos, nunca poderia correr os 800 metros em menos de 2 minutos.
Todos sabemos que é completamente impossível ao atleta, por mais que a sua resistência seja boa, correr duas vezes 400 metros seguidos em recorde pessoal.
Assim, existe sempre uma diferença entre o tal resultado que na teoria seria o melhor tempo possível de um atleta aos 800 metros (recorde pessoal aos 400 metros a multiplicar por dois) e o tempo que esse atleta realmente faz aos 800 metros.
A essa diferença, podemos chamar o “Índice de Resistência Específica” (IRE).
Vejamos um exemplo prático:
- Um atleta tem 60 segundos aos 400 metros;
- 60” x 2 = 2 minutos (melhor tempo teórico possível aos 800 metros);
- tempo real aos 800 metros – 2,13 minutos;
- O Índice de Resistência Específica é a diferença entre o melhor tempo teórico (2,00 minutos) e o tempo real (2,13 minutos), o que neste caso seria de 13 segundos (2,13’ – 2,00’ = 13”). IRE = 13”
Se verificarmos alguns IRE dos melhores especialistas portugueses de 800 metros verificamos que tal como acontece a nível mundial, este valores variam entre os 8 e 12 segundos nos homens e entre os 10 e 14 segundos nas mulheres.
- Álvaro Silva: 46,81 x 2 = 1.33,62 / 800m = 1.45,12 / IRE = 11,50”
- António Abrantes: 47,09 x 2 = 1.34,18 / 800m = 1.46,23 / IRE = 12,05”
- Nuno Lopes: 48,55 x 2 = 1.37,10 / 800m = 1.46,82 / IRE = 9,72”
- Mário Silva: 49,65 x 2 = 1.39,30 / 800m = 1.46,69 / IRE = 7,39”
- Nédia Semedo: 54,87 x 2 = 1.49,74 / 800m = 2.00,54 / IRE = 10,80”
- Sandra Teixeira: 54,31 x 2 = 1.48,62 / 800m = 2.01,88 / IRE = 13,26”
- Elsa Amaral: 53,59 x 2 = 1.47,18 / 800m = 2.01,21 / IRE = 14,03”
- Eduarda Coelho: 54,02 x 2 = 1.48,04 / 800m = 2.01,93 / IRE = 13,89”
- Carla Sacramento: 54,29 x 2 = 1.48,58 / 800m = 1.58,94 / IRE = 10,36”
Podemos pois verificar que por mais resistência que um atleta tenha, há um limite de IRE abaixo do qual ele não consegue passar. Esse limite situa-se, regra geral, nos oito segundos nos homens e nos 10 segundos nas mulheres, embora possamos aceitar como um excelente IRE os 11 segundos nos homens e os 13 segundos nas mulheres.
Assim, um atleta masculino que tenha como recorde pessoal 52 segundos aos 400 metros nunca conseguirá fazer aos 800 metros uma marca muito melhor do que 1,55 minutos (52 x 2 = 1.44 + 11” = 1.55).
Ou o caso de uma atleta feminina que tenha 60 segundos aos 400 metros, nunca conseguirá fazer aos 800 metros uma marca muito melhor do que 2,13 minutos (60 x 2 = 2,00 + 13” = 1.55).
Posto isto, parece-nos que um treinador que tenha nas mãos um potencial corredor de 800 metros, deve ter como primeira e principal preocupação nas etapas de formação desse jovem atleta, desenvolver-lhe a velocidade de base, para que ele consiga até ao segundo ano de júnior um bom resultado aos 400 metros, que lhe permita no futuro um bom resultado aos 800 metros.
Utilizámos o exemplo dos 800 metros por duas razões. Por um lado porque é a prova mais rápida do meio-fundo e por isso aquela em a velocidade é mais importante. Por outro lado porque sendo a prova duas voltas de 400 metros, é mais fácil entender a noção de IRE.
Contudo, não devem pensar que o IRE é apenas aplicável aos 800 metros. Em todas as provas de meio-fundo e fundo é possível desenvolver raciocínios semelhantes. Vejamos um exemplo dos 5000 metros.
O recorde de Portugal é de 13,02 minutos e podemos considerar que um resultado abaixo dos 13,30 minutos já é uma excelente marca aos 5000 metros, pelo menos no panorama actual do atletismo português.
Ora para se correr os 5000 metros em 13,30 minutos, um atleta tem de fazer a média de 2.42 minutos a cada 1000 metros. Como sabemos, é habitual que a primeira parte da corrida seja mais rápida que a segunda parte, pelo que é possível que um atleta para fazer 13,30 minutos aos 5000 metros corra um parcelar de 1000 metros em 2,38 minutos.
Sendo assim, o recorde pessoal desse atleta aos 1000 metros tem de ser muito melhor do que 2,38 minutos, pois só assim ele pode impor esse ritmo numa corrida de 5000 metros. Imaginemos que o recorde pessoal desse atleta aos 1000 metros é 13 segundos melhor do que ele vai passar no primeiro quilómetro da prova de 5000 metros, ou seja: 2,38 minutos – 13 segundos = 2,25 minutos (recorde pessoal do atleta aos 1000 metros).
Continuando este raciocínio, verificamos que para um atleta correr 1000 metros em 2,25 minutos ele faz uma média de 29 segundos a cada 200 metros, que lhe dá as seguintes passagens:
- 200m = 29”
- 400m = 58”
- 600m = 1.27’
- 800m = 1.56’
Com a quebra natural dos últimos 200 metros é fácil supor que o atleta teria de passar aos 800 metros a 1.54 ou 1.55 minutos e continuar mais 300 metros num bom ritmo. Ora para que isso acontecesse, o atleta teria de ter um recorde pessoal aos 800 metros de 1.52 a 1.53 minutos.
Através do IRE vamos verificar qual o tempo que este atleta teria de ter aos 400 metros. Partindo do princípio que a resistência é um ponto forte deste atleta, vamos imaginar que tem um IRE de 10 segundos e alguns décimos (o que é bastante bom).
Isso significa que o atleta tem de ter menos de 51 segundos aos 400 metros.
51 x 2 = 1.42 + 10 segundos = 1.52’
Vejamos alguns exemplos de 10 atletas entre os melhores portugueses de sempre em 5000 metros, dos quais encontrámos referências de tempos aos 800 metros, embora a maior parte tenha feito poucas vezes esta distância.
- Fernando Mamede: 5000m – 13.08,54 / 800m – 1.47,45
- José Regalo: 5000m – 13.15,62 / 800m – 1.51,96
- João Campos: 5000m – 13.19,10 / 800m – 1.49,4
- Carlos Monteiro: 5000m – 13.22,70 / 800m – 1.52,71
- José Ramos: 5000m – 13.23,77 / 800m – 1.52,65
- Ezequiel Canário: 5000m – 13.26,50 / 800m – 1.51,8
- José Sena: 5000m – 13.26,81 / 800m – 1.51,9
- Eduardo Henriques:5000m – 13.26,91 / 800m – 1.49,1
- Luís Jesus: 5000m – 13.28,64 / 800m – 1.51,1
- Alfredo Brás: 5000m – 13.30,94 / 800m – 1.50,8 "
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Lido o artigo, vem-me à memória que o Prof. João Abrantes, pelo facto de eu não conseguir baixar os 58 seg aos 400m, ter vaticinado que o meu eventual sucesso como atleta estaria sempre limitado às longas distâncias (maratona), em virtude da evidente falta de velocidade base.
A título de curiosidade, aqui fica o cálculo do meu IRE dessa altura, e que evidencia que eu era um atleta lento mas resistente.
400m : 58,1
tempo teórico aos 800m : 58,1 x 2 = 1.56,2
IRE : 2.03,9 - 1.56,2 = 7,7
Cálculo do meu IRE actual:
400m : 68,3
tempo teórico aos 800m : 68,3 x 2 = 2.16,6
IRE : 2.29,1 - 2.16,6 = 12,5
Significa portanto, que se eu quero ainda correr os 800m abaixo dos 2.20 tenha que obrigatoriamente que conseguir correr os 400m em 63,7 (63,7 x 2 = 2.07,4 + 12,5 = 2.19,9).
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